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quinta-feira, 14 de setembro de 2017

conto: O dom

Alberto era um sujeito normal. Sem graça, até. Nem magro nem gordo, nem alto nem baixo, olhos e cabelos pretos. Tinha uma família normal (menos o tio Roberto, mas é bom não falar dele), amigos normais e um emprego numa fábrica qualquer.
Mas as aparências enganam. Alberto tinha um dom. O dom de saber a hora de trocar de canal na TV.
Tudo começou na infância, quando Alberto assistia “Sessão da Tarde” e ficava esperando a hora de trocar de canal para assistir “Chaves”. E ele sempre acertava. Sentia um comichão nos dedos, apertava o controle remoto e lá estava a abertura do Chaves começando.
Alberto achava que era só coincidência, mas aconteceu muitas vezes para ser só obra do acaso. Porém, ninguém acreditava nele. Para os outros, ele só tinha sorte. Muita sorte.
Com o tempo, Alberto se acostumou com o seu dom. Na adolescência, ele teve uma fase meio rebelde – conhecida na família como “aquela fase negra do Alberto” – em que ele não ligou muito para o seu dom. Achava-se até injustiçado. Com tantos dons por aí, porque ele tinha justamente esse “poder” ridículo ?
Mas a fase negra passou, Alberto cresceu, casou, e nunca arrumou um jeito de explorar seu dom. Nem acreditavam nele. Até que um dia…
Até que um dia Alberto sofreu um acidente. Bateu a cabeça, ficou desacordado, foi para o hospital. Nada grave, se recuperou logo. Mas o seu dom se foi.
Ele não demorou a perceber. Convalescendo do acidente, Alberto assistia muita TV. E não acertava uma troca de canais. Perdeu metade do “Chaves” (ele ainda assistia, mesmo tendo decorado quase todos os episódios) um dia. No outro, foi o começo da partida do seu time. Não havia dúvidas. Alberto não tinha mais dom nenhum.
No começo ele achou até bom. Seu dom não servia para nada mesmo. Mas depois começou a sentir falta. Se irritava cada vez que perdia um pedaço do seu programa favorito. Acabou entrando em depressão. Marilice, sua esposa, que era a única que acreditava nele, tentou ajudá-lo. Ele foi levado a médicos, psicólogos, pais-de-santo. Nada resolveu. Alberto ficava a cada dia mais deprimido. Passou a beber muito. Até que um dia…
Até que um dia, já bêbado, Alberto encontrou um desconhecido num bar. Beberam muitas cervejas juntos, e lá pelas tantas, com certeza animado pelos eflúvios superiores que a cevada deve conter, Alberto contou toda a história do seu dom para o desconhecido.
– Você nunca teve um dom – disse o desconhecido, com espuma de cerveja no bigode
– Como não ? Aconteceu milhares de vezes, é impossível ser só uma coincidência – reagiu, indignado, Alberto
– Não é impossível. Veja bem, calculando as probabilidades…
– Que mané probabilidades ! Você é matemático, por acaso ?
– Por acaso sou. Com mestrado e doutorado em matemática aplicada. – O estranho procurou um cartão nos bolsos e entregou para Alberto. Meio vesgo, ele conseguiu ler: “João Graunt – matemático, estatístico e mestre em bondage”.
– Então, como eu ia dizendo, as probabilidades não são assim tão altas. Além do mais, você pode ter decorado, inconscientemente, a duração dos intervalos, e, se levarmos isso em consideração…
Mas Alberto nem estava ouvindo. Finalmente, a resposta que ele tinha esperado a vida toda ! Ele não tinha nenhum dom. Era só uma pessoa normal, vivendo uma vida sem graça numa cidade grande e poluída. Sentiu como se um peso saísse das suas costas. Saiu intempestivamente do bar. E foi atropelado por um ônibus. Teve morte instantânea.
No enterro, Marilice estava inconsolável. Nem tivera tempo de informar ao marido que estava grávida. Alberto Júnior nasceu sem pai, mas cresceu num lar feliz. Até que um dia…
Até que um dia Alberto Júnior estava assistindo TV sozinho enquanto a mãe fazia o jantar. Ele sentiu um comichão esquisito nos dedos. Não era a primeira vez que isso acontecia. Apertou o controle remoto.
– Manhê, vem ver só o que eu consigo fazer !
https://depokafe.wordpress.com/2010/05/19/o-dom/

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